Conhecido –e muitas vezes criticado– por suas previsões consideradas excessivamente positivas, o economista britânico , criador do acrônimo Bric, parece ter perdido seu entusiasmo com pelo menos um país: o Brasil.
Em 2012, quando as incertezas sobre a recuperação da economia global eram ainda maiores que as de hoje, o então economista-chefe do banco americano Goldman Sachs escreveu que se mantinha “extremamente otimista em relação ao Brasil” e que o país representava uma “grande esperança”.
Dois anos e meio depois, O’Neill afirma que muita coisa deu errado desde então. E que um dos principais responsáveis pelo baixo crescimento registrado no país é o que define como política intervencionista do governo da presidente Dilma Rousseff.
“O governo brasileiro se tornou chinês demais”, afirmou, em entrevista à Folha em Londres, onde vive. O papel desempenhado pelo BNDES na concessão de empréstimo ao setor privado nos últimos anos, a juros subsidiados, e a atuação do Banco Central que, segundo ele, precisa ser mais independente, são exemplos dessa política, diz o economista.
O’Neill, 57, porém, faz sua mea-culpa. Ele diz que errou ao acreditar que a redução da inflação na década passada iria inaugurar uma “nova era” para o país, em que não somente o consumo aumentaria, mas também os investimentos e a tomada de riscos por parte dos empresários. “Isso não aconteceu.”
Apesar disso, o economista britânico continua confiante no resto de suas previsões.
Além da China, que mesmo crescendo em ritmo mais lento, “produz uma Índia a cada dois anos”, segundo ele, outros emergentes como Nigéria e Indonésia, parte do novo acrônimo “Mint”, deverão puxar a expansão mundial nas próximas décadas.
Os “Mint” foram tema de um programa de TV na emissora britânica BBC apresentado neste ano por O’Neill, que se aposentou do banco americano em 2013. Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
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Folha – Há uma grande discussão sobre o futuro dos mercados emergentes diante de uma menor expansão global e do fim da política estímulos do Fed (banco central americano), que trouxe muita liquidez aos mercados nos últimos anos. Qual a visão do sr. sobre isso?
Jim O’Neill – A natureza dessa questão presume uma estrutura antiga do mundo. Há duas décadas, se a economia mundial estivesse desacelerando e o Fed estivesse apertando sua política monetária, seria uma péssima notícia para os países emergentes. Mas hoje a segunda maior economia do mundo é um país emergente, a China. A China crescendo a 7,5%, o que se considera “mais devagar”, equivale em dólares aos Estados Unidos crescendo a 4%.
A China é maior que Alemanha, França e Itália juntas. A China cria um Reino Unido a cada três anos, e uma Índia a cada dois. Por isso, se o mundo vai diminuir seu crescimento de forma persistente depende, em grande parte, do que a China vai fazer. Deveríamos estar nos preocupando com o que vai acontecer se o banco central chinês apertar a política monetária, e não o Fed. A forma com que a maioria das pessoas ainda pensa sobre essas questões é equivocada. O mundo mudou.
Folha – Qual sua perspectiva para o futuro da economia global?
Acho que a economia americana mostra sinais contínuos embora erráticos de aceleração. No momento acredito que isso deve levar o Fed a aumentar as taxas de juros em 2015, provavelmente no meio do ano, e isso deve trazer consequências adversas para alguns mercados.
Há uma incerteza genuína particularmente em relação à volta dos investimentos. O gasto com investimento tem sido muito fraco ao redor do mundo. Isso inclui, para os padrões chineses, a China, mas também Alemanha e EUA. Isso sugere que os negócios ainda não querem tomar muito risco no longo prazo e isso é um pouco preocupante. Achei que esse ano isso começaria a mudar. Mas até agora, não.
Folha – Em 2012 o sr. escreveu que estava extremamente positivo com o Brasil e que o país tinha um futuro promissor. Dois anos depois, o país deve crescer menos de 1% esse ano, a inflação voltou, os juros subiram. O que aconteceu?
Há uma pequena possibilidade de que nada deu errado e Brasil ainda viva uma grande volatilidade. Se você olhar para o período entre 2001 e 2003, o país tinha um crescimento tão fraco quanto o que está tendo nesta década. As pessoas se esquecem disso. Entre 2005 e 2009 o país teve um forte crescimento, em parte porque sua economia foi seriamente afetada pelo alto preço das commodities. Então, se por alguma razão o preço das commodities começarem a subir muito nos próximos anos, não seria tão surpreendente se o Brasil crescesse muito mais sem que nada efetivamente mudasse.
Porém, apesar do que eu acabei de dizer, eu acho sim que as coisas deram errado. E eu estive errado. Acho que errei porque imaginava que a inflação baixa iria desencadear uma nova era para as classes de renda baixa e média no Brasil, não apenas de maior consumo, mas também de mais investimentos, mais riscos, mais criatividade. E isso não aconteceu. O consumo foi criado por meio de empréstimos, e não apoiado por um crescimento sustentável da renda. Também não foram feitos investimentos suficientes.
Folha – Por que isso ocorreu, na sua opinião?
Um problema real é que o governo brasileiro se tornou muito chinês, ao tentar direcionar demais a economia. O famoso efeito crowding-out (queda do investimento privado diante de uma política fiscal expansionista do Estado) ocorre no Brasil. Uma consequência disso se vê na situação fiscal do país. Se o governo continuar tentando controlar tudo, gastar mais e mais, e não usar o dinheiro de forma eficiente, o déficit nas contas [como o registrado em setembro, o primeiro em nove anos] será o novo normal para o Brasil.
Folha – O intervencionismo é o principal problema?
Acho que Dilma não vem tendo sucesso na economia. Ela pode ter sido muito azarada com o “timing” na economia mundial.
Mas o intervencionismo é uma questão principal.
O papel do BNDES na concessão de empréstimos é algo muito chinês, e é também um grande problema. Junte-se a isso o fato de que ela não fez nada para tornar o Brasil mais competitivo globalmente, fora do negócio de commodities. O que o Brasil tem para oferecer ao mundo, além de matéria-primas? Qual seu diferencial? Não há apoio a um ambiente de tomada de risco, à inovação de alto impacto. Só commodities não é suficiente.
Folha – Que reformas estruturais são mais urgentes?
Um ponto crucial é que vocês têm quase 200 milhões de pessoas. Então, se o país fomentar reformas, permitindo mais dinamismo ao setor privado, apoiando uma maior tomada de risco e estimulando novos negócios, o Brasil ainda pode ser um lugar fantástico. Mas não vejo muitas evidências de que isso vá realmente acontecer.
Folha – E na política macroeconômica, que tipos de ajustes são necessários?
Acho que a presidente precisa tornar o Banco Central mais independente. Um dos problemas é que as decisões não são realmente feitas pelo BC nos últimos anos. A subida de juros que ocorreu dias após a eleição foi um desenvolvimento muito interessante nesse sentido.
Folha – O que a subida dos juros logo após a eleição demonstra, na sua visão?
Foi uma surpresa levemente positiva porque os mercados gostam de ver o que os políticos fazem, não apenas o que eles falam. [A subida de juros] pode demonstrar que Dilma será mais sensível às demandas do mercado, mas ainda é cedo para dizer.
Folha – A inflação acima da meta ameaça a credibilidade do país?
Sim. No que diz respeito ao sistema de meta de inflação, a credibilidade do sistema está definitivamente sob ameaça, e por isso que a alta dos juros é tão importante. Além disso, por causa dessa montanha russa, muitos investidores simplesmente não estão mais interessados no Brasil. De certa forma, isso pode ser bom, pois pode incentivar o governo a fazer as reformas.
Folha – Qual sua avaliação sobre a criação do banco dos Brics?
Foi uma surpresa positiva. Os países do grupo têm conversado sobre isso há dois anos, e muita gente começou a pensar: “eles não conseguem concordar em nada, é tão ruim quanto o FMI ou o G-20″. O fato de que eles finalmente concordaram em algo substancial é um desenvolvimento positivo. O fato de que a sede da instituição será na China foi também interessante, mostrando a importância do “C” no Bric. Vejo também como um sinal de que os chineses veem o Bric como uma forma de “experimento” para um projeto de assumir maior responsabilidade global.
Folha – Qual deve ser o papel do banco dos Brics?
Os Brics já deveriam ter maior peso no FMI e no Banco Mundial, mas não conseguem por causa do Congresso americano. Por outro lado, não concordo que a criação do banco seja uma resposta a sub-representação nessas instituições, porque elas continuam pesadamente envolvidas em programas de empréstimos para esses países. Hoje, diria que o banco tem um papel puramente simbólico.
Folha – Os Brics possuem muitas diferenças entre si, e muitos consideram que, por isso, não deveriam ser considerados um grupo coeso. Como o sr. responde a isso?
É claro que eles possuem grandes diferenças, mas qual grupo político não possui? Tome o G-7, por exemplo. São todos países democráticos, é verdade, mas o que mais há em comum entre os EUA e a Itália? Os Brics têm muitas diferenças entre eles, mas têm também muito em comum em aspectos importantes, como população e tamanho da economia. E nessa análise, excluo a África do Sul, que é um país pequeno com população pequena. Eu particularmente questiono a sensibilidade de incluir a África do Sul no grupo. Acho que foi um erro estratégico.
Folha – A China passa por desaceleração e enfrenta um grande desafio demográfico. Você continua otimista em relação ao país?
Sim. Qualquer um que estudou China nos últimos 20 anos sabe que desafios demográficos começariam a surgir no começo desde década. Portanto, não há surpresa inclusive pra mim. Além disso, o governo chinês está tentando enfrentar a questão, se livrando da política de filho único, por exemplo. Sobre a desaceleração da economia, eu presumi muitos anos atrás que a China iria desacelerar nesta década. Até agora, a desaceleração foi menor do que previa tanto [sua previsão é de expansão média de 7,5% entre 2010 e 2020).
Folha – Qual sua análise sobre a Índia, sob o governo do primeiro ministro Narendra Modi?
Estou muito animado com a Índia sob o governo Modi. Um dos maiores problemas do país é a complexidade de sua democracia. Com a força da vitória de Modi, há uma chance para reduzir a complexidade da democracia da Índia pela primeira vez em 30 anos. É uma mudança grande e positiva, com impactos na economia. Acho que na segunda metade desta década é possível até que a Índia possa crescer mais que a China, em termos percentuais.
Folha – Você criou recentemente um novo acrônimo para um grupo de países, os Mint (México, Indonésia, Nigéria e Turquia). Que características os une e o que os diferencia dos Brics?
De novo, a principal característica que os une é a população. E, em contraste com China e Rússia, os quatro países do MINT têm população jovem, portanto não há um fardo demográfico. A população economicamente ativa nesses países vai crescer muito nos próximos 20 anos, o que é uma diferença importante em relação aos Brics. Além disso, são países com relações comerciais muito diversas. Já a Nigéria é uma exceção, com população muito grande, mas também desafios relacionados à elevada corrupção e à democracia.
Folha – Você afirmou recentemente que não concorda que a desigualdade tenha aumentado nas últimas décadas, argumento defendido pelo economista francês Thomas Piketty. Por quê?
Não sou crítico de Piketty, mas da popularidade dessa visão [sobre aumento da desigualdade]. Acho que existe uma enorme hipocrisia das pessoas do ocidente. O fato é que, em indicadores de pobreza mundialmente aceitos, vimos uma grande queda da desigualdade mundial na ultima década. Em boa parte por causa dos países emergentes. A meta da ONU de reduzir a pobreza à metade em 2015 foi atingida em 2010.
Minha segunda crítica é que é idioticamente simples pegar a diferença entre o cidadão mais bem pago e o menos pago e dizer isso que isso significa que a desigualdade está crescendo.
Por fim, há um subcontexto na discussão que envolve um protesto quanto às pessoas enriquecerem. Não queremos que nossas pessoas fiquem mais ricas? Venho de uma realidade dura em Manchester [cidade no norte da Inglaterra]. E lá as pessoas não reclamam por eu ser rico. Ao contrário, elas gostariam de ter enriquecido também, de uma vida melhor. Acredito na importância da desigualdade de oportunidade, não no debate simplista de desigualdade de renda.
Extraído => Folha de São Paulo - 11/11/2014